Palavras Limpas

Porque a poesia pertence aos que precisam dela

28 março 2007

Suíte para Ela

I

Meu Amor, lembra-te daquelas tardes
em que o nosso amor brotava no peito
de uma maneira inocente e sem jeito
que mal cabia em nossa'lma covarde?

Como era bom aquele nosso tempo!
tu andavas com uma rosa nos cabelos
e espelhava no semblante o contento
de amor virgem, que ainda sonho em vê-lo

Onde tu estás agora, Minha Amada?
procurei por ti em tantos amores
mas o que deles guardei foi um nada.

O que me resta é te amar em segredo;
não me remoendo em caladas dores,
mas te fazendo eterna em meu soneto.



II

atravessou as portas e janelas
dourando porta-retratos e umbrais,
desfez meu sonho que sonhava nela
e matou a noite com seus punhais

por que tu viestes me despertar?
tu sabes que não é feliz a vida
de quem fez do encontro uma despedida
e tem, por quinhão, jamais remoçar...

ó, Raio-de-Sol! sou feliz sonhando;
é assim que eu esqueço o lamento tanto!
pois dos sonhos nasce o poema, e,

desse poema, faz-se a fantasia.
e então reacende n'alma a alegria
daquele amor que há mui tempo eu Vivi.

23 março 2007

olho por olho

olhe para mim
não assim, mas no fundo dos meus olhos...

agora está vendo este papel aqui?
então, o que está escrito nele?

(...)

não, isso não é uma poesia!
é apenas uma folha de papel,
uma folha de papel
manchada com letras rabiscadas
a sangue cru.

18 março 2007

Um Detalhe

ela chegou em casa e a primeira coisa que fez foi limpar a maquiagem borrada dos olhos.
tirou os brincos, o colar, as pulseiras e o salto 15.
tomou um longo banho quente para tirar aquele perfume barato, e decidiu que no outro dia mudaria a cor dos cabelos.
ela queimou todas as cartas e rasgou todos os retratos que enfeitavam a geladeira e as paredes.
jogou fora todos os presentes caros e um antigo disco de música, e decidiu que no outro dia mudaria a cor da casa e trocaria de carro.
ela, enfim, limpou o seu corpo das marcas do velho amor que se desfez
e dormiu decidida a remoçar
pois só assim conseguiria mudar o presente e o futuro.

ela, enfim,
dormiu

com a aliança prateada colorindo a mão direita.

16 março 2007

A bomba iraniana

Por que o Irã não pode ter a bomba atômica?
O Ocidente, através de seu porta-voz George Bush, responde: “Porque o Irã não está preparado para viver no seio das nações civilizadas”.
Mas o que o Irã pode fazer que o Ocidente já não fez?
A Inquisição?
Isso o Ocidente civilizado já fez.
Ocupar, saquear e transformar o continente africano em colônia?
Isso o Ocidente civilizado já fez.
Ocupar, saquear e colonizar o continente asiático?
Isso o Ocidente civilizado já fez.
Provocar a Primeira Guerra Mundial?
Isso o Ocidente civilizado já fez.
Provocar a Segunda Guerra Mundial?
Isso o Ocidente civilizado já fez.
Jogar a bomba atômica sobre Hiroshima?
Isso o Ocidente civilizado já fez.
Jogar a bomba atômica sobre Nagasaki?
Isso o Ocidente civilizado já fez.
Invadir o Iraque e destruir mais de 35 mil sítios arqueológicos?
Isso o Ocidente civilizado já fez.
Invadir o Afeganistão e não deixar pedra sobre pedra?
Isso o Ocidente civilizado já fez.
Ocupar e transformar a belíssima Guantânamo cubana num centro de tortura?
Isso o Ocidente civilizado já fez.
Saquear as riquezas das Américas do Sul e Central?
Isso o Ocidente civilizado já fez.
Construir um muro em Israel para segregar os semitas palestinos?
Isso o Ocidente civilizado já fez.
Financiar os principais cartéis de drogas de todo o mundo para dar uma sobrevida a Wall Street?
Isso o Ocidente civilizado já fez.
Realmente, o Ocidente tem razão: “O Irã não está preparado para viver no seio das nações civilizadas”.


**texto retirado do blog do Georges Bourdoukan (http://blogdobourdoukan.blogspot.com)

14 março 2007

Apelo

Fiz do meu coração
Uma pedra
Para jogar em tua vidraça.
Talvez assim eu quebre
O silêncio
Da tua indiferença.

07 março 2007

Poema em linha reta


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

(Álvaro de Campos)